Marília Sobral Benjamin
Psicóloga do ENTRELAÇOS ESPAÇO INTERDISCIPLINAR
- O estudo psicanalítico sobre as questões raciais no Brasil – Dar Cor ao Corpo.
Venho falar de um lugar que durante muito tempo ficou invisível: sem cor, sem corpo e sem voz. Peço licença porque o racismo ainda é muito pouco debatido no meio clínico, inclusive na psicanálise. Peço licença para falar de forma breve, porque na verdade os impactos do racismo são profundos e demandam uma complexidade de olhar e de cuidado, pois afeta a todas as pessoas brancas e negras. Peço licença por ocupar um lugar de entre. Entre pele negra e pele branca. Entre experiências pessoais e clínicas. Entre vulnerabilidade e ascensão social. Entre violências e subjetividades. Entre negritude e identificação. Entre cor, corpo e poema.
Como psicóloga negra, integrante da Entrelaços – espaço interdisciplinar e do CAPSi Sobradinho- SES/DF, procuro com este texto traçar o início do estudo psicanalítico sobre as questões raciais no Brasil e oferecer algumas propostas de expressão e criatividade para o enfrentamento do racismo na prática clínica.
Na história da Psicanálise no Brasil, temos nossa pioneira, Virgínia Bicudo (1945), que introduziu o assunto das relações raciais em sua dissertação de mestrado quando ainda era da Sociologia. E, ao entrar na Formação Psicanalítica, promoveu o debate sobre a incidência da realidade social no trabalho clínico (Bicudo, 2016). Por ser mulher, negra e não-médica na única Sociedade de Psicanálise do Brasil localizada em São Paulo, Bicudo abriu caminho para muitas outras. No entanto, por bastante tempo, Virgínia foi silenciada e apagada das referências psicanalíticas, sobretudo nas universidades.
Nos anos 80, tivemos a publicação de Neusa Santos Sousa (1983) que a partir de entrevistas e da escuta, escancarou nossa história de desenraizamento, escravidão, embranquecimento e discriminação racial. Ela aponta que ser negro vai muito além dos traços e da pele. Para a autora, ser negro é um vir-a-ser, é tomar posse da consciência de si (em suas facetas ideológica, mítica e alienada) e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração.
A partir da década de 90, os estudos psicanalíticos raciais foram ganhando corpo. Isildinha Baptista Nogueira (1998) explora o modo como a realidade sócio-histórico-cultural do racismo e da discriminação se inscreve na psique do negro, enfatizando a amplitude de representações imaginárias e simbólicas que influenciam na construção da subjetividade. Em 2002, Maria Aparecida Bento fala sobre o Racismo Institucional e analisa como as desigualdades raciais acontecem nas relações de trabalho e como a branquitude ocupa um lugar de privilégio racial, econômico e político, conservando e reproduzindo as hierarquias raciais e pactos narcísicos dentro das organizações.
Mais recentemente temos uma geração que tem se dedicado não somente à revisão crítica sobre o tema, bem como tem apresentado propostas fundamentais à prática clínica. Maria Lúcia da Silva (2017a), uma das organizadoras do livro “O Racismo e o negro no Brasil”, nos traz os efeitos do racismo e da força dos atributos negativos referente aos negros. Para ela, os efeitos negativos aparecem justamente nas queixas relacionadas aos sentimentos de “não-lugar”, humilhação, silenciamento e imobilidade. Maria Lúcia pergunta o que os psicanalistas brasileiros têm feito para fazer frente à violência do racismo e nos instiga a pensar estratégias de fortalecimento entre negras e negros. Em artigo (2017b), ela aborda a literatura como forma de ajudar a compreender a história de nosso povo negro e a nós mesmos. Com isso, a literatura se constituiria como dispositivo para o fortalecimento de nossa identidade e autoestima e como forma de reinventar nossas trajetórias pessoais e coletivas.
Lucas Veiga (2019) assinala a importância do resgate epistemológico das produções negras sobre os diferentes temas e do encontro terapêutico entre pacientes negros e psicólogos negros. Com apontamentos precisos, ele articula a dimensão de aquilombamento à experiência clínica de cuidado da saúde mental da população negra brasileira. A partir de seus estudos, Veiga tem promovido cursos para psicólogo(a)s e procura introduzir direções clínico-políticas para a expansão de uma psicologia preta no Brasil.
E, por fim, Taiasmin Ohnmacht (2019) a partir da escuta e leitura de um Sarau de Poesia Negra no Rio Grande Sul, o Sopapo Poético, marca a necessidade em se fazer frente ao discurso político ideológico racista e dominante, a partir desses encontros no sarau e da construção dos laços entre os participantes. O corpo negro precisa de um lugar próprio reconhecido e o sarau com seus poemas tem esse potencial transformador e criador de novos sentidos. A autora traz a expressão “corpoema” para descrever esse trabalho singular da linguagem poética que envolve corpo e negritude, palavras, gestos e vozes, próprios do falar e ser ouvido.
- O encontro com a negritude na clínica – Dar corpo ao poema.
O meu percurso teórico-clínico teve seu início com a escrita da minha dissertação de mestrado sobre a função do ritmo na constituição psíquica (Benjamin, 2007). Naquele momento eu não tinha realizado ainda uma leitura racial clínica. Só recentemente, a partir do curso sobre Psicologia Preta com Lucas Veiga, que meu mundo revirou e me deu vontade de ler bem mais da literatura afro-brasileira. Pude olhar para trás e ver os três casos que acompanhei nos meus estágios no HUB e na Clínica Social da UnB (CAEP): um recém-nascido na UTI neonatal, uma criança com características autísticas e um jovem de funcionamento psicótico, todos negros.
O acompanhamento desses pacientes me mostrou a importância do trabalho não-verbal na clínica psicanalítica. Observei que os pacientes se comunicavam a partir do ritmo das suas sensações e de seus movimentos e gestos. E, com eles, concluí que o ritmo funcionava como elemento primordial do psiquismo e da relação terapêutica. Sendo algo preservado e saudável na vida do sujeito, como se representasse o elo ainda existente entre ele e sua história. Hoje posso ver também como um reencontro com a subjetividade negra dentro de cada um de nós.
Sobre a questão do ritmo, Veiga (2019) apresentou a conceituação de Naim Akbar (1975) que diz: “o ritmo seria o movimento que leva as pessoas negras a buscar formas de reconectar com a dimensão coletiva de sua origem divina” (Apud Veiga, p. 247). O ritmo sendo a característica que os africanos do continente e da diáspora trazem de geração após geração de seus ancestrais pela via da memória do corpo e de uma possível transmissão genética.
É o ritmo que promove a reunião entre africanos e a criação de práticas coletivas que possibilitam a reconexão com o divino que nos constitui e transborda. O que me leva pensar como tais práticas coletivas (dança, música, capoeira, candomblé, contação de estórias, inclusive, os grupos terapêuticos) podem funcionar como formas de manutenção da saúde mental negra em meio aos traumas reais e às violências da colonização e do racismo.
E como isto comparece na clínica psicanalítica e nas sessões individuais? Aparece de diversas formas e em todas as idades. Cabe ao analista, terapeuta ou qualquer profissional de saúde estar aberto à escuta sensível e ao encontro com a negritude e africanidade presente na história de vida de seus pacientes. Mesmo que esta história não apareça diretamente no seu discurso, mas compareça em seus gestos e comportamentos, inclusive em sua dor e invisibilidade. Sabemos que os impactos do racismo são bem complexos e atingem diferentes áreas da vida, gerando várias formas de sofrimento. E uma delas, da qual pretendo dar destaque é o desenraizamento.
Ao falar da nova geração, o psicanalista Gilberto Safra (2004) reflete sobre três diferentes modos de desenraizamento. Desenraizamento étnico, que é caracterizado como perda de conexão com sua origem, que aparece como impossibilidade de pertencer e de encontrar seus iguais; O Desenraizamento estético – refere-se à falta das organizações rítmicas, temporais e espaciais, que possibilitam ao sujeito vivenciar na clínica experiências de descanso, contemplação, não invasão e apropriação do próprio corpo; e Desenraizamento ético – oriundo de um mundo nem sempre regido pelo respeito, nem por uma responsabilidade pelo humano. O sujeito fica quase sem perspectiva de vida e pode apresentar um comportamento anti-social, fazendo com que o outro sofra o terror da violência experimentada. Há um anseio pelo reconhecimento de que o vivido não foi ético (Benjamin, 2019).
O que vemos na clínica são pessoas negras que parecem ter nascido sem cor, que sentem insegurança quanto à sua própria dignidade e quanto ao “tal merecimento” de cidadania. Alguns não conseguem fazer laço com outros pares, ficam sem espaço e sem voz. E, que em casos mais extremos, pode levar ao sujeito desistir da própria vida (reflexos do ódio introjetado). Portanto, é um sofrimento profundo que nos exige um compromisso coletivo.
A proposta clínica de abertura ao encontro com a negritude me levou a perceber como fui permeada por vários afetos (rejeição, luto, abandono, solidão, luta, resistência, amor, ódio e sobrevivência, arte), sensíveis tanto à minha própria vida quanto à vida de alguns pacientes. Deste encontro, surge a denúncia de como nosso atual cenário ético-político-existencial está fraturado e, muitas vezes, desesperançado. O que resulta num apelo por mudança e pela urgente necessidade de enfrentamento e ressignificações.
Fazer frente ao racismo é cuidar da saúde mental da população. É compreender que os crimes racistas e seus atos violentos devem ter a consequência legal prescrita e necessitam uma intervenção de saúde que de fato ajude interromper o ciclo de perpetuação do discurso dominador e abusivo. Enfrentar o racismo é promover mudança de forma transversal, interdisciplinar e coletiva. E ao mesmo tempo, de maneira mais individualizada, é escutar as dores, trabalhar as identificações e apoiar as diferentes formas de expressão (arte, literatura, espiritualidade). É resgatar a dimensão da africanidade tão presente na história do nosso país e de cada sujeito envolvido. É contextualizar os afetos, mesmo aqueles permeados de ódio e revolta, que eles possam ser falados e acolhidos, para não precisarem ser atuados, contidos ou silenciados na dor, no sofrimento, na prisão ou na morte.
A população negra pede espaço, tempo e testemunho para existir. Demanda conexão, troca e referências. Faz jus a todo nosso respeito, reverência e eficiente reparação ética e política. A estratégia clínica aqui proposta permite acolher os modos como cada sujeito se constitui, estar junto ao paciente, num espaço compartilhado de experiência, podendo encontrar formas de dar corpo aos pensamentos, escrevendo novas vivências, reencontrar seu próprio ritmo e ancestralidade e, finalmente, criar poesia na vida.
Assim como Taiasmin Ohnmacht que descreve o Corpoema como um enlace que procura romper com a ideia da neutralidade e universalidade, cabe a nós, considerarmos o potencial transformador do CORPOEMA. Ao entrelaçar encontro, negritude e diversidade, o trabalho terapêutico vai ganhando corpo, existência e continuidade. E, dessa maneira, podemos costurar as feridas dos traumas vividos e nos abrir a toda possibilidade de sentidos e ressignificações que o sujeito e a criação coletiva possam comportar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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