Carlos Frederico de Macedo Coelho e Marília Sobral Benjamin
Psicólogos do ENTRELAÇOS ESPAÇO INTERDISCIPLINAR
Em 25 de novembro de 1960 na República Dominicana, as irmãs Mirabal – também conhecidas como “Las Mariposas” – foram assassinadas pelo Regime do Ditador Rafael Trujillo. Naquela data, regressavam da cidade de Puerto Plata, onde seus respectivos maridos encontravam-se presos. Foram detidas na estrada e assassinadas por agentes do Estado. A ditadura tentou simular um acidente. Durante muito tempo estiveram na clandestinidade (por isso o codinome Mariposa). Eram ativistas em diversas causas sociais. Esse assassinato causou enorme rechaço internacional e acelerou a queda do ditador Trujillo.
Em 1999, quase 40 anos depois, a Assembleia Geral da ONU proclama o 25 de novembro como Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher. Vinte anos antes, em 1981, Primeiro Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho realizado em Bogotá, Colômbia, o movimento feminista propõe o dia Latino-Americano e Caribenho de luta contra a violência à mulher.
O combate à violência contra à mulher é uma luta política, porque não é meramente um esforço coletivo/estatal de se fazer com que homens não agridam mais mulheres: é por questionar toda uma estrutura de poder patriarcal da sociedade que cria condições para que situações de violência de gênero contra à mulher aconteçam. Em suma, não basta agir no vetor da violência: é necessário agir naquilo que socialmente “justifica” a violência de homens contra mulheres.
A psicologia é uma área das ciências humanas bastante atuante no que concerne na discussão e na atuação de temas socialmente sensíveis. Sua sensibilidade crítica quanto à singularidade do sujeito e suas necessidades, bem como uma visão humanizada do manejo de diversos problemas sociais parecem contribuir para esse engajamento.
A psicologia e suas práticas já se debruçam sobre a questão da violência possivelmente desde os seus primórdios, passando sobre os estudos psicanalíticos da pulsão de morte até a dinâmica das famílias violentas estudada pela teoria familiar sistêmica. Isso não é diferente no caso da violência de gênero contra a mulher.
Lenore Walker, psicóloga estadunidense, em seu livro “The Battered Woman” (A Mulher Espancada, em tradução livre) desenvolve de maneira aprofundada e didática o Ciclo de Violência contra a Mulher, a dinâmica relacional que descreve como alguns casais podem se manter em uma relação violenta por um longo período de tempo. As fases são as seguintes:
- Fase 1 – Aumento da Tensão: nesse primeiro momento, o agressor mostra-se tenso e irritado por coisas insignificantes, chegando a ter acessos de raiva. Podem acontecer episódios de xingamentos e destruição de objetos. A vítima pode negar que isso está acontecendo com ela, escondendo essa situação de outras pessoas. Pode passar a acreditar que ela é responsável pelo comportamento do agressor. É uma situação que pode levar dias, meses ou anos;
- Fase 2 – Episódio de Violência: essa fase corresponde à explosão do agressor. Toda a tensão acumulada da Fase 1 se materializa em um episódio de violência, seja ela física, verbal, moral, patrimonial, psicológica ou sexual. Mesmo tendo consciência de que o agressor está fora de si, a vítima tende a se paralisar, se anestesiar. A vítima geralmente se afasta do agressor, podendo buscar algum tipo de ajuda, pedir a separação ou denunciá-lo;
- Fase 3 – Lua de Mel: essa fase se caracteriza pelo arrependimento do agressor para que ele consiga a reconciliação. O agressor tende a se tornar mais amável e carinhoso, prometendo que não mais irá reincidir na violência. A vítima tende a se sentir confusa e pressionada a voltar com o agressor, chegando a até acreditar em uma melhora. A vítima tende a se sentir responsável pelo remorso do autor, o que pode estreitar ainda mais a relação de dependência entre vítima e autor. Na maior parte dos casos, essas mudanças são superficiais, contribuindo para que a tensão e a violência da Fase 1 voltem a acontecer.
A compreensão de Lenore Walker para o fenômeno da violência contra a mulher serve para ilustrar de forma clara como é importante compreender a violência de gênero contra a mulher em um âmbito relacional, ou seja, o profissional de psicologia deve ter o cuidado quanto a compreensões intrapsíquicas, subjetivas e meramente mentalistas da violência que acontece entre casais que limitam a sua compreensão e o seu enfrentamento.
Não é raro encontrar na prática clínica uma certa tendência de alguns profissionais em psicologia uma certa tendência a esse “psicologismo” acima descrito. Esse “psicologismo” pode fazer com que se siga um perigoso caminho de neutralidade profissional, de uma certa conivência quanto a crenças e atitudes opressoras e sexistas em nome do respeito aos processos mentais do sujeito e a sua singularidade.
É fundamental uma leitura que leve em conta que os atores envolvidos nesse triste fenômeno social estão inseridos justamente em uma sociedade patriarcal que naturaliza a violência de gênero como algo constituinte das relações familiares. A possibilidade de assim pensar essas questões nos remete colocar a psicologia clínica no âmbito de uma compreensão política dos seus sujeitos, no que é concernente às relações de gênero justamente por haver uma relação de poder nos relacionamentos entre homens e mulheres. Na intervenção contra a violência de gênero contra a mulher isso é um pressuposto básico.
Todavia essa não é uma tarefa fácil, tendo em vista que a formação dos psicólogos tende a ser insuficiente no que diz respeito à abrangência de fatores estruturais da sociedade como gênero, raça e classe social e os impactos deles na forma do sujeito ser e estar no mundo. Soma-se a essa demonização nefasta dessa importante discussão quando seguimentos reacionários de nossa sociedade criam o equivocado conceito de “Ideologia de Gênero”, que serve apenas para manter as coisas inadequadamente como estão em termos de luta pela igualdade de gênero. Essa talvez seja uma luta com frutos para as próximas gerações.
Portanto, não podemos mais ser coniventes com a tentativa constante de legitimar a violência, o preconceito e a radicalização ideológica. Além de um grande número de mulheres que continuam sendo vítimas, observamos um masculino adoecido e descompensado. Estamos diante de uma patologia social que é mantida por um engendramento de mecanismos de dominação e subordinação de raízes muito antigas. Nossos esforços, como psicólogos, voltam-se no sentido de romper com a perpetuação dos ciclos de violências e de considerar uma intervenção complexa e integrada a outros campos de atuação e saberes. É preciso também atuar junto aos dois ou mais polos envolvidos na situação, incluindo a rede de apoio de ambos.
As possíveis sementes para mudança passam pela responsabilização dos autores envolvidos e deve incluir acompanhamento psicossocial a longo prazo tanto para as vítimas quanto para os autores das violências. E o espalhar das sementes passam pela contínua formação e educação de nossos meninos e meninas em desenvolvimento. Sem correr o risco de um idealismo utópico, temos uma aposta nas novas gerações. Ao terem contato com diferentes realidades e diversidades, desenvolvendo resiliência, empatia e compromisso coletivo com o outro, a nova geração tende a carregar em si essa capacidade crítica e potencialidade transformadora na compreensão das questões de gênero e pela defesa dos direitos humanos.